10 de agosto de 2009

Culpa incontrolável

“Há cerca de seis meses ela se mudou para cá. Costumo sair de manhã ao trabalho, ela sempre me cumprimentava com um ‘bom dia’ encabulado. De tarde, eu a encontrava às vezes quando ela chegava da escola, e nos cumprimentávamos mais uma vez. Ela nunca foi de falar com o pessoal daqui. Os cumprimentos diários eram só por educação.

Certa vez, ela estava lendo um livro, era um dossiê de algum pensador famoso. Fiquei espantado, pois é raro alguém jovem lendo um tipo de leitura que exige tanta compreensão. Cheguei até ela e pude ver que era mesmo sobre Nietzsche que estava lendo, ao lado tinha outro do Freud e um caderno com algumas anotações. Acabei pensando alto e disse ‘Como alguém tem paciência para ler isso?’. Ela ouviu e respondeu ‘Para alguém que quer um futuro culto, paciência não é nada. Além do mais, a profissão que quero exigirá entender a mente humana’. Desde então ficamos conversando.

Aproximamos-nos à medida que os dias passavam, nossas conversas foram ficando íntimas. Era impossível esconder algo dela, ela desconfiava e tinha aquele olhar de que sabe de tudo, e foi assim que deixei de omitir minha profissão clandestina. Ela acabou sabendo que sou traficante, desde então conversamos sobre drogas.

Ela me contou histórias de que já usou e as descreveu detalhadamente, disse que por sorte não viciou em maconha e cocaína. Usou pouquíssimas vezes, duas no máximo, porém são essas poucas vezes que podem nos fazer viciados. E o mais incrível é que me dei conta de que ela usou bem nova, pois ela tinha quinze anos quando nos conhecemos e falou que deixou de usar há dois anos.”

“Senhor, quando foi que ela lhe pediu as drogas?” – Perguntou o advogado.

A família dela estava tensa, a mãe chorava rios junto da filha mais velha e agora única. O pai mostrava-se forte mesmo que por dentro a dor dilacerava-o, alguém tinha de ser a fortaleza que não se abala.

“Ela não me pediu drogas em momento nenhum, eu estava esperando um cliente chegar para eu dar o pedido, foi na sexta-feira. Assim que ele chegou peguei a droga da minha mochila e entreguei disfarçadamente, foi numa dessas que ela viu onde eu as guardo. Então ela veio me cumprimentar assim que o cliente foi embora, ficamos conversando enquanto ela esperava o namorado. Fui ao banheiro do play do prédio mesmo e pedi a ela que tomasse conta da minha mochila, quando voltei só vi um homem alto ordenando que ela devolvesse sabe-se lá o que e para quem! Devia ser o namorado dela. Dei um ‘tchau’ bem baixinho para ela e subi ao meu apartamento.” – Neste momento o traficante dá uma pausa, respira fundo já impaciente de falar detalhadamente o que se passou.

“Mas então, Senhor, prossiga, por favor.” – Alertou o advogado.

“Cerca de dez minutos bateram à minha porta, era ela e o namorado. Ele berrava dizendo para ela entregar o que eu ainda não sabia, então ela me entregou. Era a droga. Fiquei pasmo, pois não sabia que ela ainda tinha vontade de usar. O namorado a pegou pelo braço e parece que eles continuaram a discutir depois. E meu relato acaba por aqui, Vossa Excelência.”

Chegou a hora do namorado da falecida prestar o depoimento, era um momento muito difícil, descrever a morte da amada era tão...

Ele não parava de chorar, ninguém conseguia o conter, a dor era mais forte que tudo.

“Tenha calma, Senhor, peço que descreva tudo.” – Pediu com delicadeza o advogado.

“Ela pediu que eu fosse vê-la, quando cheguei ao play do prédio dela, onde marcamos de nos encontrarmos, eu a vi pegando um saco com um pó branco dentro da mochila do vizinho, eu não sabia que era do vizinho. Perguntei a ela o que estava fazendo. Ela não respondia, ficava calada, pois não precisava responder o que meus olhos já diziam, fiquei muito decepcionado, pensei que ela nunca mais tocaria nas drogas, eu a pedi para jamais fazer isso, pelo nosso amor, não era simples? Mas não. Desde que ela conheceu esse vizinho suas atitudes mudaram, eu sabia que havia algo de muito estranho, mas não sabia que tinha drogas no meio. Perguntei de quem era a droga e ela respondeu com uma voz que mal pude ouvir, era uma voz de choro. Ela respondeu que era do vizinho, então mandei devolver. Discutimos bastante, relembrei todas as promessas que fizemos um para o outro, todos os erros que não cometeríamos mais, como sempre ela quebrava as regras, eu já tava cansado, mas sei que nunca a deixaria de amar. Peguei-a pelo braço e caminhamos até o elevador, ela acionou o botão do andar do vizinho e lá fomos. Mandei mais uma vez ela devolver e assim o fez.

Fomos para o último andar, lá é tranquilo de conversar e o vento da noite era relaxante, sempre foi nosso lugar favorito do prédio, mesmo a mãe dela preferindo que ela não ficasse no último andar por ser alto demais, isso não importava, eu a protegeria.

Terminei com ela, ela precisava voltar ao normal. E essa foi a única opção que me restou, tentei de tudo, ela já não era a mesma, estava se afastando de mim aos poucos mesmo sem perceber. Sei que se eu terminasse, ela repensaria sobre seus erros, me pediria perdões em que ela se mostrasse realmente arrependida. Porém dessa vez não foi o que eu esperava, pensei que fosse resolver dessa vez, estive enganado. Ela foi para o corredor deste mesmo andar, sem dizer uma sequer palavra. Continuei sentado vendo o reflexo da lua batendo à janela de outros prédios, me deu uma tristeza tão grande e era de se esperar, mas tomou conta de mim um pressentimento muito ruim. Eu não costumo me enganar, estava assustado com o que pudesse acontecer.

Ouvia os gritos e choros dela vindos do corredor, ela parecia estar morrendo, eu torcia mentalmente para que ela tivesse força para reverter essa situação, afinal não vivemos um sem o outro. Foi tudo tão depressa... Ela correu para a... Ela correu para a minha direção... Quando eu vi... Ela estava... Estava caída lá embaixo... MORTA! Eu gritei o mais alto que pude pedindo socorro, desci correndo as escadas, estava muito afobado para esperar o elevador. Eu gritava para chamarem a família dela e discarem para a ambulância.

Quando cheguei lá embaixo havia uma multidão, não aguentei de dor... vi o cérebro dela pra fora, tinha um buraco na cabeça dela, o impacto foi tão grande! Como não pude protegê-la? Eu a prometi. Nunca perdoarei, fui eu o motivo de sua morte, como pude causar o suicídio de quem tanto amo?!”

O caso estava encerrado. Não havia culpado, mas é claro que o vizinho foi preso pelo tráfico de drogas, só que não por muito tempo. As leis do Brasil não são rigorosas como deveriam ser.

A família estava arrasada, mas não tanto comparado ao namorado. Àquele que sempre a sentiu tão profundamente, àquele que soube de toda sua vida, àquele que a amava incondicionalmente.

No enterro... O namorado tocava a defunta sem nojo algum, beijava suas mãos e sua boca um pouco deformada pela queda, e não parava de dizer que a encontraria onde quer que fosse.

Isabelle Soares Souza de Assis – 10 de agosto de 2009

5 comentários:

Raphael Quintão disse...

nossa, amor, que triste ;~~
te amo muito!

Vivian Zabot disse...

Foda, foda, foda, foda *--*
adorei cara! Ficou muuuuuuito legal. Legal, MESMO! Parabéns *-*
beijos, beijos ;*

Mariane disse...

muiito perfeito...
amei! [como sempre]


te cuida
:*

Vitor Alves disse...

Obrigado pela sua visita ao meu blog. Achei muito lindo esse texto . *_*

Anônimo disse...

Você busca o extremo de cada frase, de cada palavra, se sua vontade é transmitir tristeza, você trasmite o extremo e assim pra qualquer outro sentimento, isso ultrassa a barreira do talento e da crítica, pra quem lê, quando lê e só quando entra no que lê, você atinge a perfeição, parabéns!